A maestria da água
A natureza é viva e inspiradora. Conscientes de que os mesmos princípios que regem a natureza regem o homem, os povos antigos a contemplavam a fim de extrair a sabedoria aplicável a uma vida próspera e feliz. Quanto mais afinados ao ciclo natural, melhores resultados obtinham na saúde, bem-estar, harmonia social, etc.
Na cultura da China antiga, isso é bastante expressivo. Das artes marciais à medicina chinesa, tudo é embasado nos princípios do fluxo de energia da natureza regulado pela interação entre céu e terra. Dentre os modelos naturais de virtude, a água destaca-se como a pura expressão da essência da vida. Exploremos o simbolismo da água através de algumas passagens do Dào Dé Jīng (Tao Te Ching), um dos mais profundos livros de sabedoria da humanidade.
Dào Dé Jīng – Capítulo 8
上善若水。水善利万物而不争
A bondade sublime é como a água
A bondade da água está em beneficiar a todos sem discriminar
Temos na introdução do capítulo uma referência à benevolência, o sentimento natural de comunhão com os outros seres viventes. A universalidade é uma característica da água, que ocupa a maior área da superfície do nosso planeta e que compõe a maior parte do nosso corpo, participando de todos os processos orgânicos. A mesma água que o rico bebe, o pobre também bebe, igualmente reis, ladrões, judeus ou palestinos. A água compõe tanto o néctar quanto o lodo. Enfim, a água serve a todos da mesma forma, sem qualquer diferenciação. A benevolência tem justamente relação com a não discriminação – nem por raça, por gênero, por nacionalidade, por preferências partidárias, nem por qualquer sectarismo criado pelo homem. Possamos nós remover os rótulos que projetamos nos outros, e a qualidade de nossas relações será completamente diferente. Tal como na água, a benevolência se expressaria com naturalidade em nós. Sendo límpida, a nossa conduta transparece o coração benevolente.
处众人之所恶,故処nbsp;于道
Permanece em locais desprezados pelo homem
Por isso, é semelhante ao Dào
Onde o homem comum quer estar? No topo, à frente dos outros, no local mais vantajoso. Ninguém quer estar num patamar inferior. E é justamente para o lugar mais baixo que a água vai. Ao abrigar a dualidade em nossas mentes, comparamos, rotulamos e discriminamos. Os locais inferiores são para pessoas inferiores – pensamos. Não queremos nos rebaixar. Esquecemos que o alto se apoia no baixo, que a natureza expressa a sua força criativa a partir de uma semente, que a nutrição vem da raiz. Podemos atingir altas posições, mas se esquecermos de cultivar o nível basal, estaremos fadados à queda.
Todo bom general partiu de um bom soldado. As leis naturais elevam quem faz um bom cultivo. Essa é a atuação do Dào. A mentalidade cultural em países como Japão demonstra esse princípio, onde em muitas empresas, os patrões e funcionários de alta patente regularmente se envolvem em tarefas como varrer o ambiente ou limpar o banheiro a fim de se lembrarem de quem são – humanos – e evitar a tendência egoica de supervalorizarem o seu cargo em detrimento de qualquer outra função. Todas são igualmente importantes. Para o universo, não há status social.
居善地
Seja límpido ao habitar a Terra
A benevolência se expressa inicialmente onde estamos localizados, onde habitamos. Se não expressarmos a nossa virtude onde estamos, aqui e agora, qualquer expressão externa será de uma falsa virtude, ou seja, um mero exibicionismo que esconde um interesse egoísta.
心善渊
Mente com límpida profundidade
Coração e mente no nível das aparências são tendenciosos. Carregam julgamentos, opiniões e conclusões equivocadas que dão origem à paixão desenfreada e ao ódio. Somente uma mente capaz de deixar a superfície das impressões pode penetrar no nível profundo da consciência, próximo à nossa essência. Somente um coração profundo pode tocar em profundidade o coração de outra pessoa e compartilhar sentimentos genuínos. A água sempre encontra frestas e poros para penetrar. A concentração mental, da mesma forma, se aprofunda e reconhece aspectos sutis de nós mesmos, até penetrar na fonte do nosso ser. Podemos então ser um canal para o fluxo da sabedoria interna, a nossa intuição.
与善仁
Doe com límpida gentileza
A intenção pura garante uma doação autêntica. Qualquer ideia de recompensa ou retribuição manifesta-se de uma intenção impura e cheia de ganância. A energia que emanamos é que determina a qualidade do que recebemos. Da mesma forma que há o fluxo e o refluxo na água, a lei do ritmo funciona para nós. A doação deve brotar da gentileza.
言善信
Fale com a limpidez da integridade
A fala é a exteriorização do que temos em mente. Mensagens dúbias, palavras que dão margem à interpretação duvidosa ou à desconfiança, isso se deve à nossa expressão como um todo. Emitimos energia através da linguagem verbal e corporal. Quando nos comunicamos, não somos só corpos, mas energias inteligentes se comunicando. Na interação com os outros, detectamos mensagens não verbalizadas. Se pudermos ser límpidos como a água cristalina, falando com o coração, com gentileza, certamente criaremos uma boa interconectividade com as outras pessoas. Seremos claros para nós mesmos, sem intenções turvas.
政善治
Governe com a limpidez da ordem interior
Um bom governo não é bom aparentemente, mas é intrinsecamente bom. Quem não tem ordem interna exige ordem dos demais. Em nosso espaço íntimo, se houver ordem, esta naturalmente fluirá para o exterior e se expressará em nossas funções externas. Em um fluxo de água, o conteúdo interno tem relação com o externo. Assim é o funcionamento de um bom governo, condizente com seus princípios internos.
事善能
Trate com a limpidez da eficiência
Grande parte dos profissionais é ineficiente no que faz e por isso não prospera. Fazem o trabalho superficialmente pensando no resultado a curto prazo. Em pouco tempo, o cliente pode perceber o quão mal feito foi o trabalho, mas até lá, o profissional já “tirou o seu da reta”. Deixando um rastro de trabalhos mal feitos e que sabemos que estão fadados a falhar a qualquer hora, isso se reflete em muitos aspectos de nossas vidas como um rastro de imundice, de dejetos apodrecendo no rio de nossa consciência. Para uma consciência livre e limpa, devemos despoluir nossas ações com atenção plena ao nosso trabalho. Desse modo, fazendo tudo com carinho, o fluxo da vida se torna límpido.
动善时
Ajuste suas ações ao momento apropriado
Somos imediatistas grande parte do tempo. Esquecemos a lei básica de que tudo prospera a partir de causas e condições. Investimos nossas ações sem analisar as condições apropriadas e sem esperar pelo momento oportuno. Causa sem condição não prospera. É como remar contra a correnteza. Muitas vezes, devemos esperar pela convergência de vários fluxos para que não nos desgastemos. O timing correto nos leva a fluir com a correnteza. Esse é o segredo dos sábios. O universo conspira a favor dos sábios porque eles agem no momento adequado.
夫唯不争,故旦nbsp;尤。
Por não entrar em atrito, estará imune às adversidades
Essa frase conclui o capítulo. A água serve a todos sem se opor a nada. Toma a forma do recipiente, segue os desígnios da natureza, beneficia a todos os seres. Se quisermos evitar confrontos, não coloquemos divisões psicológicas para separar as pessoas. Abandonemos as preferências e tendências partidárias. A água que bebemos e que excretamos é uma só. Não criemos distinção social e, desse modo, estaremos em harmonia com todos os seres como um só ser.
No capítulo 78, Lao Zi declara:
“Não há nada no mundo tão frágil e suave quanto a água
No entanto, para vencer o forte e rígido, nada é tão eficiente quanto ela
Isso é algo que muitos sabem, mas que poucos podem praticar”
A sabedoria popular afirma o mesmo no ditado “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. A atuação da água, como a ação das ondas por anos sobre os rochedos, é algo duradouro. Ninguém através de uma atitude imediatista, por mais força que tenha, teria poder para fazer o que a água faz através da ação constante.
Quando o ego nos domina, enxergamos as situações muito superficialmente. Por impaciência, deixamos a suavidade de lado e buscamos resultados rápidos. Nos esforçamos muito e, paradoxalmente, o resultado é insuficiente, ao contrário da água. A água não tem ego – não tem forma, portanto, não tem apego à forma. Ela se conforma ao recipiente, se molda à situação. Portanto, segue o seu fluxo e cumpre com o seu dever.
Na busca de resultados imediatos, deixamos de cultivar as sementes que produzem frutos duradouros. Esquecemos que o fluxo da natureza compreende ciclos, que há o momento apropriado para a ação específica. No ciclo das estações, não adianta querer colher frutos na primavera e apreciar as flores vívidas no outono. Antes de tudo, devemos nos adequar à sabedoria daquilo que nos rege, a natureza. Aquilo que é jovem e frágil tem potencial para crescer e se desenvolver, ao passo que aquilo que está no ápice da robustez, tende ao declínio natural. O frágil de hoje superará o forte no amanhã quando suas posições se inverterem. O tolo é surpreendido por eventos que o sábio antevê por meio da compreensão dos ciclos.
É dito no capítulo 66:
“O que converte o mar em rei de todas as correntezas?
Situar-se abaixo delas”
Isso é estar a favor do curso natural. Parece contraditório que o inferior esteja em uma posição de comando. Em nossa noção de sucesso, o movimento ascendente, a seta para cima, denota um grau de domínio e liderança. Porém, o alto depende do baixo e se o baixo não pode tocar o alto, como o alto pode ter qualquer envolvimento com aquele que o sustenta? Real grandeza é manter-se abaixo dos demais para servi-los, como o mar serve aos rios e córregos. O sábio, igualmente, pratica a humildade e se coloca atrás do povo para incentivá-lo. Dessa maneira, é tido como mestre pelos demais. O povo dá suporte àquele que lhe oferece amparo – é a reciprocidade.
Wu-Wei – a não-ação
É dito que o sábio age através do wu-wei (não-ação), tal como a água. A água, por si, não tem desejos. Sem forma, ela segue os desígnios da natureza – flui adaptando-se ao Yin e Yang, as forças primordiais da natureza. O Yin é representado pelo ideograma que indica o lado escuro de uma colina, e o Yang, o lado iluminado da colina. Yin é a quietude, a introversão, a passividade. Yang é o movimento, a exteriorização, a atividade. Quando a ação do Yang é preponderante sobre a água, suas moléculas são aquecidas e se agitam, tornando-se vapor e subindo. Quando a ação Yin impera, as gotículas se agrupam e descem no sentido da gravidade terrestre. Tudo muito natural.
A razão de o ser humano não agir como a água é porque ele tem preferências e desejos. Quando as coisas estão indo na direção que ele sente prazer, seu impulso é o de manter essa experiência – aí está o apego. A intenção de apego interrompe o fluxo. Quando o momento já passou, mas a pessoa insiste que a experiência permaneça, ela está indo contra o fluxo natural. É como se o vapor da água quisesse continuar flutuando mesmo após ter se tornado uma nuvem carregada e pronta para chover. A água obedece ao momento. Esse é o wu-wei.
As situações de vida nos pedem ações coerentes com o momento. Da mesma forma que cada uma das quatro estações da natureza tem características próprias, nós temos a atitude emocional da assertividade, da alegria, da introversão e da precaução. Há momentos condizentes com tais atitudes, mas quando se tornam excessivas, são incoerentes com o momento e causam problemas. É quando a assertividade se torna raiva, a alegria se torna euforia, a introversão se torna melancolia e a precaução se torna medo. Nesse momento, não estamos mais fluindo em wu-wei, e sim estagnados.
Não estar em wu-wei é não estar a favor do fluxo da vida, do fluxo do Dào. O ideograma 道 (Dào, Caminho) é composto pelos radicais 辶 (ir) e 首 (cabeça). Não há Caminho se não houver o Caminhante (cabeça) e o Caminhar (ir). Dào é ao mesmo tempo o Caminhante, o Caminhar e o Caminho, ou seja, causa, condição e efeito. No budismo, é ensinado que todos os fenômenos são resultado de causas e condições. Para que haja o efeito do fluxo, é preciso que a causa encontre a condição, ou seja, o canal. A água é a causa, a ação do Sol (yang) e da gravidade (yin) são as condições, o efeito é a ascendência ou a descendência da água. No wu-wei, portanto, o sujeito se coloca à mercê das condições do momento para que como efeito, sua ação seja adequada. Quando o sujeito age em distonia com o momento, o efeito é a ação desordenada e artificial, ou seja, o sofrimento.
Ser coerente com o momento é ser uno com o Dào. Lao Zi diz que para se estar em consonância com o Dào, é preciso cultivar três tesouros: a benevolência (慈), a simplicidade (儉) e a modéstia (不敢為天下先). Pela benevolência, tem-se coragem, uma vez que a mente não está restrita ao pequeno eu, e sim motivada por algo maior, o bem estar coletivo. Pela simplicidade, tem-se a genuína gentileza, uma vez que a pessoa que sabe ser econômica e usufruir aquilo que é realmente necessário, pode doar aos outros sem depender da retribuição. Por não se colocar à frente dos outros e por cultivar a modéstia, tem-se a liderança, uma vez que a pessoa evidenciará a sua nobreza e inspirará as pessoas e as condições a colocarem-na à frente. A prática desses três tesouros é um investimento a favor da essência da vida. Quem os pratica é amparado pelo Dào.
O fluxo, a não-forma
A característica da água da fluidez, seguindo sempre em frente e contornando obstáculos, deve-se à água não ter forma. Nós seres humanos nos iludimos com as impressões sensoriais e damos importância demasiada à forma. Por causa da forma existe a aparência, por causa da aparência existe a ilusão, por causa da ilusão existe o apego. Se encarássemos a vida como um fluxo constante, não insistiríamos com tanta rigidez em manter as coisas da nossa forma.
No fluxo de nossas vidas, quando encontramos um obstáculo, temos capacidade de nos adaptar e achar maneiras criativas de contorná-lo como a água, mas o ego quer que seja da sua forma. “É o obstáculo que está errado por estar na minha frente!” A energia da ação, ao ficar obstruída, gera frustração, um incômodo agudo. Mantida por muito tempo, se torna crônica, e a energia vai para o inconsciente ficar armazenada. Não é esquecida, não evapora. No inconsciente, que é como um mar para onde fluem todas as memórias, todo o seu conteúdo participa na composição da nossa realidade como a vemos. Mesmo que não percebamos, nós projetamos nossos desejos e impulsos com base nesse conteúdo armazenado. Os pensamentos e ações são fluxos que se originam do mar da consciência (que inclui tanto o conceito de consciente quanto de inconsciente). Cada intenção, pensada ou expressa, deposita sementes no mar da consciência. Somos os responsáveis pelas consequências de nossas intenções.
A vida é cíclica, fluída e está acontecendo neste exato momento. A água é a expressão fidedigna da sabedoria da vida. Cabe a nós ter olhos para enxergar e força de vontade para praticar.
Marco Moura