Ética Marcial (wude)
O sentido profundo das artes marciais é a realização da harmonia. Dedicando-se ao seu aspecto filosófico, a prática se torna um caminho (道 dào em chinês, do em japonês) – um caminho interior, um caminho para a paz.
Embora o termo “marcial” se refira a guerra, não há incoerência em se utilizar a prática marcial para cultivar a paz, uma vez que o intuito é eliminar o conflito. Os ensinamentos orientais nos incentivam a observar os opostos não como separados, mas como polos distintos de um mesmo fenômeno. Devemos enxergar na sombra a semente da luz; no sofrimento, o potencial da liberação; no lodo sujo, o lótus puro. Como símbolo desse princípio, a saudação das artes marciais chinesas (敬禮 ging lai em cantonês) expressa a união harmoniosa entre os opostos: o punho fechado, yang, que pode agredir; e a palma aberta, yin, que pode deter uma agressão. Sol e lua em harmonia: um símbolo do não-conflito.
Sun Tzu, lendário general estrategista do século IV a.C., escreveu em seu livro A Arte da Guerra: “O verdadeiro objetivo da guerra é a paz”. Lao Zi, filósofo taoista, frisou no Dao De Jing que as armas são instrumentos nefastos que só devem ser utilizados em última necessidade – o sábio deve evitar a guerra a todo custo, buscando a paz, a tranquilidade e valorizando a retidão. Podemos compreender por tais palavras que em muitos casos, a guerra ou o combate é algo inevitável, mas sempre que possível, devem ser evitados. Mesmo adentrando na guerra, o coração do guerreiro deveria estar livre de ódio e pleno de compaixão. Para tanto, o guerreiro deve cultivar com disciplina um caráter equânime, enfraquecendo o egoísmo e fortalecendo as suas virtudes.
Por meio da auto observação e dos conhecimentos agregados, o praticante de artes marciais toma contato com a vulnerabilidade humana. Aprende a conhecer a si mesmo e ao oponente; a recuar e a avançar; a proteger-se e a atacar; a ser flexível e a ser enérgico. A meditação tem um papel muito importante nas artes marciais. Ela treina o foco mental por meio da atenção plena, ajudando o praticante a manter a atenção em cada movimento do corpo. O praticante aprende a conhecer o seu poder interno, a direcionar os impulsos, a superar os obstáculos emocionais e a transformar o seu caráter.
Historicamente, a proposta de grande parte dos mestres de artes marciais envolve um caminho de harmonia e de espiritualidade no dia a dia. Na China, as artes marciais receberam grande influência do taoismo, do budismo e do confucionismo, que embutiram um sentido de respeito muito forte pela natureza, pelos seres viventes e pela energia que anima todos os seres (ch’i). No Japão, o zen budismo influenciou diretamente suas artes marciais, originando um código de ética (budô) que devia ser seguido com muito rigor. A disciplina e a ética passaram a compor a cultura desses sistemas. Por isso, tais praticantes de artes marciais eram notavelmente elevados em seu caráter, dotados de paciência, sabedoria e compaixão.
O universo das artes marciais originárias da China é muito diversificado e, embora não exista um consenso a respeito da moralidade marcial, muitos mestres dão grande ênfase à cultura e filosofia. Em muitos estilos tradicionais, o aluno é avaliado não somente pela sua técnica, mas pela sua conduta moral, pela disciplina e concentração. Antes de avançar no aprendizado, o aluno deve mostrar até que ponto os ensinamentos adentraram em seu coração.
O método de treinamento das artes marciais que observam um código de ética se baseia no respeito e na tolerância, de modo que os parceiros de treino tenham consciência de que o treinamento não deve estimular o engrandecimento de um sobre o outro. A retidão é fundamental e o artista marcial deve saber retirar-se antes de o seu ego elevar-se.
Todo praticante de artes marciais é responsável pelos seus atos, bem como o professor é responsável pelo que transmite aos alunos. Por isso, o aluno é avaliado não só pela sua técnica, mas também pela sua conduta. Na China, o código de ética marcial é norteado pelo Wǔdé (武德), literalmente: “virtude marcial”. A primeira referência histórica à virtude marcial é creditada ao Rei Zhuāng de Chǔ (613-591 a.C.) em seus anais de assuntos militares. O modelo atual é baseado em dois aspectos: As Cinco Constantes e os Oito Princípios.
Cinco Constantes [五常 Ngh Sèuhng (cantonês)/Wu Chang (mandarim)], elaboradas por filósofos confucionistas na Dinastia Han:
- Benevolência (仁 Yan/Rén): refere-se ao altruísmo e ao coração aberto para servir aos outros com empatia.
- Conduta Reta (義 Yih/Yì): pensamentos e ações alinhadas com ideais nobres e justos.
- Cerimônia (禮 Laih/Lǐ): corresponde às boas maneiras ao se lidar com as outras pessoas, com os seres vivos e a natureza. De forma geral, corresponde a tratar o outro com respeito e cortesia.
- Sabedoria (智 Ji/Zhì): compreensão profunda de como as nossas intenções afetam a nós mesmos e ao meio.
- Confiabilidade (信 Seon/Xìn): para ser alguém confiável, é preciso em primeiro lugar confiar em si mesmo, avaliando se nossas intenções estão alinhadas com os nossos princípios.
O estilo Garra de Águia, de origem militar e preservado ao longo de séculos por monges budistas, apresenta uma base consistente na formação de um indivíduo. Como um sistema de ensino físico e moral, estabelece um código de ética (武德 wǔdé) muito bem estruturado e que serve como norteador de conduta para o praticante. Levando-se em conta que antigamente os estilos eram transmitidos em sigilo para os descendentes e para alguns poucos escolhidos, a conduta ética do praticante era o fator mais importante a ser avaliado pelo mestre. Nesse estilo, enfatizam-se os oito princípios a seguir.
Oito Princípios [八德 Baat Dak (cantonês)/Bā Dé (mandarim)]:
Dentro da ética budista, observam-se cinco preceitos básicos: não matar, não roubar, não mentir, não se intoxicar e não ser irresponsável sexualmente. Tais preceitos são como mestres que ajudam o praticante a trilhar o caminho do aperfeiçoamento sem que o seu coração-mente seja corrompido.
Os preceitos exprimem a pureza do coração do praticante, que é o que qualifica o seu caráter. A virtude (功德, gōngdé) do praticante é o reflexo das suas escolhas, do cultivo das qualidades apropriadas e enfraquecimento dos impulsos do ego. A agressividade deve ser abandonada diante do desafio. Uma pessoa pacífica não é necessariamente uma pessoa que não possa ferir alguém. Por exemplo, quem guarda rancor e não agride os outros por covardia não é uma pessoa pacífica. Uma pessoa pacífica por virtude é aquela que tem a possibilidade de machucar, mas que opta por ser amorosa e compassiva. O seu corpo pode ser uma arma, mas devido ao cultivo apropriado da mente, ela o utiliza como instrumento de paz.
Havendo uma compreensão clara acerca do que compreende o caminho da arte marcial, o praticante assume um compromisso de seguir a conduta que pode levá-lo com segurança ao objetivo proposto: a harmonia. Com confiança no método, a dedicação de corpo, coração e mente o conduzem no caminho do aperfeiçoamento.
Marco Moura